21 março 2024

Edgar Allan Poe - O Corvo

 


O Corvo é um dos meus poemas favoritos e o corvo "Nunca mais!".

Eu andei sumida do blog devido as altas temperaturas aqui no Sul, mas aos poucos estou retornando, as chuvas voltaram e a estiagem parece ter dado uma pequena trégua, não sei por quanto tempo.  Uns lugares por aqui chove demais e em outros nem um pingo.


Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,

A ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,

E, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,

Tal qual se houvesse alguém batido à minha porta, devagar.

“É alguém,  fiquei a murmurar, que bate à porta, devagar;

Sim, é só isso e nada mais.”


Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro

E o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.

Ansiando ver a noite finda, em vão, a ler, buscava ainda

Algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora

Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora

E nome aqui já não tem mais.


A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,

Arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.

De susto, em pávida arritmia, o coração veloz batia

E a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.

Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.

É apenas isso e nada mais.”


Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:

“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;

Mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,

Que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,

Assim de leve, em hora morta.” Escancarei então a porta:

Escuridão, e nada mais.


Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a a fundo, a perquiri-la,

Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.

Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,

Só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”

E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”

Depois, silêncio e nada mais.


Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,

Mais forte, o ruído recomeça e repercute nos vitrais.

“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?

Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,

O vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.

É o vento só e nada mais.”


Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:

É um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.

Como um fidalgo passa, augusto e, sem notar sequer meu susto,

Adeja e pousa sobre o busto, uma escultura de Minerva,

Bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,

Empoleirado e nada mais.


Ao ver da ave austera e escura a soleníssima figura,

Desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.

“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular”, então lhe digo

“Não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo!”

Qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”


Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,

Misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;

Pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,

Que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,

Uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta

E que se chame “Nunca mais”.


Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,

Com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.

Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,

Enquanto a mágoa me envenena: “Amigos? sempre vão-se embora.

Como a esperança, ao vir a aurora, ele também há de ir-se embora.”

E disse o Corvo: “Nunca mais.”


Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,

Julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.

Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura

E a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo

De seu cantar; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo

De “Nunca, nunca, nunca mais”.


Como ainda o Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,

Girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais

E, mergulhado no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,

Visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,

Com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo

Grasnava sempre: “Nunca mais.”


Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,

Eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.

Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada

Dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,

Dessa poltrona em que ela, ausente, à luz cai suavemente,

Já não repousa, ah! Nunca mais?


O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso

Ali descessem a esparzir turibulários celestiais.

“Mísero!, exclamo. Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus,

Esquecimento, lá dos céus, para as saudades de Lenora,

Sorve-o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”


“Profeta!? brado? Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal

Que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,

De algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita

Mansão de horror, que o horror habita, imploro, dize-mo, em verdade:

Existe um bálsamo em Galaad? Imploro! Dize-mo, em verdade!”

E o Corvo disse: “Nunca mais.”


“Profeta!” exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!

Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,

Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,

Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,

Essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”

E o Corvo disse: “Nunca mais!”


“Seja isso a nossa despedida! Ergo-me e grito, alma incendida.

Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!

Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!

Deixa-me só neste ermo agreste! Alça teu voo dessa porta!

Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”

E o Corvo disse: “Nunca mais!”


E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,

Sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.

No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,

E a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.

Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma; e, presa à sombra,

Não há de erguer-se, ai! nunca mais!